Tudo começou em um sarau
regado a vinhos. O Sarau da Guaicanãs é um famoso encontro notívago de artistas
cultivadores da sensibilidade do espírito, o que fazem etílicamente apreciando poemas
e músicas consideradas de alto nível. Eu falo cultivadores do espírito, porque
com o corpo ninguém se demonstrou preocupado nesse último evento, tamanho o desespero do vício inebriante de tantos
fumantes de cigarros, raça da qual recuso-me a pertencer oficialmente, pois que
não sou viciado como eles e o cigarro, ao contrário do néctar de Baco, não
oferece prazer a um paladar sofisticado, muito menos proporciona um aroma
delicado aos equipamentos olfativos mais exigentes. Dele, o cigarro, sempre resta
apenas a fumaça que um incauto não consegue transferir para os seus pulmões e a
despeja ao ar e às narinas alheias,
feito mais um dos dejetos não aproveitados pelo próprio metabolismo, esse uma
espécie de pum cancerígeno. Como nunca fui um fumante oficial – não há como
admitir pertencer a essa estirpe ralé -, nos períodos em que me entrego a
sorver free longos, o faço compulsivamente, maço após maço, numa demonstração
inequívoca de que será somente mais aquele trago e nunca mais. Esclarecida essa
possível dúvida, ponho-me a relatar que nessa noite do tal sarau regado a
vinhos, certo momento em que a névoa do tabaco tornou-se menos densa, divisei
um personagem postado pacatamente e longínquo daquela sanha vaporosa. Com sua
pose intelectual, cabelos desgrenhados a exemplo de um einstein e sua espessa barba
que lembrava uma barba de capitão de
caravela desbravadora de oceanos desconhecidos, esse ser destacava-se do
ambiente degustando tranquilamente o seu cachimbo como se nem estivesse ali.
Provavelmente não estava, comparecia somente ao desligar-se de sua sintonia
etérea para beber vinho, namorar, brindar-nos recitando versos e dedilhar
teclados de marfim (de marfim, pelo menos para ele e para este cronista). Ao
ver essa cena discrepante ao todo da paisagem, imaginei que podia eu ao menos
ser um tripulante da ousada caravela, manifestando esse desejo a minha amada,
que prontamente patrocinou-me a aquisição de um cachimbo, sem o qual não
poderia zarpar para a aventura. Calma, leitores, a estória do cachimbo já vai
começar. É que depois de várias tentativas para acender o fornilho, estou
fazendo uma pausa para tragadas comedidas no tubo aspirador do meu cachimbo,
tal qual faz o capitão da caravela. Continuando, confesso que não está sendo
fácil essa transformação. Sei-me um extremado ansioso, mas reputo que
considero-me totalmente controlador de meus eventuais ímpetos raivosos, posto
que aos cinquenta e um anos de idade e avô de gêmeas geminianas, meditei a
respeito do equilíbrio latente que me impele a dominar os anseios perversos que
poderiam provocar uma reação intempestiva às ações da vida. Reações que não
combinam mais com o atual momento evolutivo da minha personalidade. Voltando a
estória do cachimbo, para economizar os proventos da amada, comprei o que fui
saber depois, o mais vagabundo dos mais vagabundos dos mais vagabundos fumos vagabundos
que poderia adquirir. Ainda não dotado de conhecimento a respeito do novo
brinquedo de adulto, a inaugural tentativa de pitar foi um desastre. Primeiro,
como colocar calmamente o fumo no cachimbo se ele não para em pé? Cerquei-o de
livros na altura necessária e, aí sim, após respirar fundo para tornar-me zen,
fui despejando devagarinho com a pazinha adequada e, com o socador, fui compactando
o fumo no devido compartimento. Sobre o socador gostaria de dizer que quase o
utilizei para socar a cara da vendedora do fumo mais vagabundo dos mais
vagabundos dos mais vagabundos fumos vagabundos, porque além de vagabundo, ela tentou empurrar-me um de sabor chocolate.
Contive na hora o soco, afinal tudo isso era para provar-me a maturidade. Levei
um de sabor rum. Descobri depois que o fabricante omitira o “i” entre o “u” e o
“m”. Após colocar metade do fumo, pensando que deveria deixar espaço para
incendiar o tabaco, peguei uma caixa de fósforos que gastei inteira sem acender
o maldito vagabundo sabor ru(i)m. Sem querer me dar por vencido, fiz com uma
pequena madeira uma espécie de cotonete/fósforo e acendi para tragar e tossir
que nem uma vaca. Sim, como uma vaca, porque diz o ditado popular.... “nem que
a vaca tussa”, então, mesmo que não fumem, as vacas se tossirem tossirão os
pulmões fora. Traguei violentamente. A droga apagou. Reacendi. Traguei mais
violentamente ainda. Tossi que nem uma vaca tossiria. Apagou. Quase joguei o
cachimbo longe, mas evitei porque já sou avô e equilibrado. Nessa hora percebi
também que não tenho uma barba uniforme e não sei se combina fumar cachimbo sem
uma barba espessa, porque posso fazer a pose intelectual e os meus cabelos são
mais desgrenhados que o interior da selva amazônica. Mas recordei também que
sou um contestador dos padrões vigentes, portanto danem-se as barbas espessas.
Resolvi continuar com a estória do cachimbo, mas realmente eu estava prestes a
desistir, devido às dificuldades para fumar a novidade e a ruindade do rum.
Entretanto a minha amada, ao saber que eu estava prestes a capitular e buscar
um pacote de free longo, com seus olhos meigos e sorriso irresistível
perguntou-me se eu desistiria assim tão fácil. Aquilo mexeu com meus brios
leoninos. Rugi internamente e respondi, também sorrindo, que nunca desisto.
Comprei um fumo irlandez, o mesmo que o capitão da caravela utiliza. e pasmem!
Seguindo todos os procedimentos corretos, socando o irlandez até transbordar e
usando um isqueiro, queimei o fumo e consegui pitar quase oito minutos, tragando sem parar para não deixar apagar.
Ainda não estou fumando o cachimbo como um especialista, pois há um processo de
aprendizagem a passar, mas esta noite o farei de novo. Enquanto isso, vou fumar
um free longo, mas só mais este, só mais este....
faroberto
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