quarta-feira, 20 de julho de 2016

poema noturno





o anoitecer nas casas —
as pálpebras feito lábios
se beijam lentamente no escuro.
os lábios feito asas
no voo das pronúncias
semi-inaudíveis.


sexta-feira, 8 de julho de 2016

FAROBERTO E O BUSÃO 4727-10

Tenho utilizado o péssimo transporte público da cidade, vulgo Busão, um serviço precário como tudo o que oferecem prefeitura ou governo de SP apesar dos brutais impostos, taxas e cobranças com que afligem a população. Eventualmente utilizo o Busão Praça da Árvore que passa naquela praça que tem de tudo menos árvore. Mesmo com aplicativos para saber onde está o ônibus, sempre que me aproximo da esquina do ponto vejo o veículo indo embora com seu emburrado motorista careca. Não falha.  Dez ou quinze passos antes que eu chegue à esquina ele passa, seja qual a hora que eu for lá. O desgraçado do calvo motorista deve ter um GPS especial para localizar usuários se aproximando, principalmente os de nome Fábio Roberto. Só poder ser isso. E o cara ainda parte bem devagar, fingindo parar para estimular uma corrida falsa de esperança ao incauto, acelerando avidamente ao menor gesto que se faça e soltando aquela fumaçinha pelo escapamento do bus que deve ser dos gases do seu podre intestino. Muito bem. Isso foi até hoje, quando resolvi ir ao ponto disfarçando ansiedade, desejo, pressa ou necessidade, aconselhado por Krishnamurti. Assobiando “é maravilhoso e impressionante que a sede nunca passa...” de forma despreocupada, como quem nem vai pra lugar algum, segui apenas apreciando a paisagem, os passarinhos cantando nos jardins, os cães no passeio matinal e cumprimentando os vizinhos que varriam suas calçadas. Faltando quinze passos para a fatídica esquina, olhei para trás, coloquei a mão no bolso procurando algo, mera dissimulação para o energúmeno motorista descabelado e seu GPS para Fábios Robertos pensarem que eu ia voltar. Mantendo o andar ritmado e calmo, cheguei à esquina. De soslaio perscrutei o ambiente e vi. Lá estava ele, o Busão 4727-10, e seu calvo motorista parados no ponto, com uma fila de passageiros paulatinamente subindo ao veículo. O pseudo-piloto profissional me viu e entrou em desespero ao perceber-me aumentando os passos para superar os dez metros da esquina ao ponto.  Ele apertou num frêmito o acelerador tentando fazer os passageiros entrarem mais rápido no Busão. Alguns até tropeçaram. Mas não teve jeito. Placidamente o alcancei já partindo, pulei e mesmo desequilibrado entrei sorrindo ironicamente, dei um sonoro e geral bom dia que foi respondido pelas pessoas próximas, menos pelo enrubescido de raiva e escalvado condutor de araque. Então fui até o cobrador assobiando alegremente “é maravilhoso e impressionante...”

Aí começou a segunda parte do embate. Aquilo que o projeto de chofer pensou que seria sua vingança. Como correu aquele Busão numa espécie de Fórmula 1 particular, rangendo cada pedaço de metal, soltando parafusos, parecendo que iria se desintegrar. Nenhum buraco segurava o ímpeto do piloto da calvície. Não havia valeta, lombada ou obstáculo que fizesse arrefecer a sua sanha. As curvas eram feitas praticamente em duas rodas. Pessoas jogadas pra lá e pra cá feito sardinhas em lata, gritaram revoltadas. Não adiantou nada. O segurador de volante e sofredor de alopecia, de olhos esbugalhados, nem mais ouvia a campainha solicitando parada. Ele só tinha o intuito insano de me derrubar e machucar. Só que eu não entro em duelo despreparado. Já havia afivelado meu cinto de segurança, daqueles usados para lavar janelas em prédios de cinqüenta andares, no cano do carro e me mantinha ali firme e pregado como macaquinho nas costas da macaca-mãe. Objetos, velhinhos e crianças voavam no interior do bólido a exemplo do que acontece num avião despressurizado. Buzinas ensandecidas eram acionadas pelos automóveis nas ruas. Acenos de marronzinhos, apitos, viaturas do CET, ambulâncias, bombeiros e helicópteros dos programas sensacionalistas de TV perseguiram o 4727-10 desvairado pelo bairro do Jabaquara, até que as sirenes e barreiras da polícia fizeram o aparvalhado timoneiro de testa alongada frear o desgastado coletivo.
Soltei o cinto de segurança, fui para a porta de saída do carro ao lado do navegador desprovido de proteção capilar na moleira, agora com um sarcástico e incontrolável gargalhar de vitória. Parei no pé da escada. Dei um “duplo twist carpado com pirueta”, digno de olimpíada e cheguei ao solo sem movimentar o corpo um milímetro. De braços abertos recebi os aplausos de todos os passageiros, policiais, marronzinhos, bombeiros, paramédicos e curiosos.

Dotado de crânio vazio por dentro e por fora, aquele escalpelado psicopata Jóquei de Busão não imaginava quem tinha provocado.


Faroberto