Tenho utilizado o péssimo
transporte público da cidade, vulgo Busão, um serviço precário como tudo o que
oferecem prefeitura ou governo de SP apesar dos brutais impostos, taxas e
cobranças com que afligem a população. Eventualmente utilizo o Busão Praça da
Árvore que passa naquela praça que tem de tudo menos árvore. Mesmo com
aplicativos para saber onde está o ônibus, sempre que me aproximo da esquina do
ponto vejo o veículo indo embora com seu emburrado motorista careca. Não
falha. Dez ou quinze passos antes que eu
chegue à esquina ele passa, seja qual a hora que eu for lá. O desgraçado do
calvo motorista deve ter um GPS especial para localizar usuários se aproximando,
principalmente os de nome Fábio Roberto. Só poder ser isso. E o cara ainda
parte bem devagar, fingindo parar para estimular uma corrida falsa de esperança
ao incauto, acelerando avidamente ao menor gesto que se faça e soltando aquela
fumaçinha pelo escapamento do bus que deve ser dos gases do seu podre intestino.
Muito bem. Isso foi até hoje, quando resolvi ir ao ponto disfarçando ansiedade,
desejo, pressa ou necessidade, aconselhado por Krishnamurti. Assobiando “é maravilhoso
e impressionante que a sede nunca passa...” de forma despreocupada, como quem
nem vai pra lugar algum, segui apenas apreciando a paisagem, os passarinhos
cantando nos jardins, os cães no passeio matinal e cumprimentando os vizinhos
que varriam suas calçadas. Faltando quinze passos para a fatídica esquina, olhei para trás, coloquei a mão no bolso procurando algo, mera dissimulação para o energúmeno motorista descabelado e seu GPS para Fábios Robertos
pensarem que eu ia voltar. Mantendo o andar ritmado e calmo, cheguei à esquina.
De soslaio perscrutei o ambiente e vi. Lá estava ele, o Busão 4727-10, e seu calvo
motorista parados no ponto, com uma fila de passageiros paulatinamente subindo
ao veículo. O pseudo-piloto profissional me viu e entrou em desespero ao
perceber-me aumentando os passos para superar os dez metros da esquina ao
ponto. Ele apertou num frêmito o
acelerador tentando fazer os passageiros entrarem mais rápido no Busão. Alguns
até tropeçaram. Mas não teve jeito. Placidamente o alcancei já partindo, pulei
e mesmo desequilibrado entrei sorrindo ironicamente, dei um sonoro e geral bom
dia que foi respondido pelas pessoas próximas, menos pelo enrubescido de raiva
e escalvado condutor de araque. Então fui até o cobrador assobiando alegremente
“é maravilhoso e impressionante...”
Aí começou a segunda parte do
embate. Aquilo que o projeto de chofer pensou que seria sua vingança. Como
correu aquele Busão numa espécie de Fórmula 1 particular, rangendo cada pedaço
de metal, soltando parafusos, parecendo que iria se desintegrar. Nenhum buraco
segurava o ímpeto do piloto da calvície. Não havia valeta, lombada ou obstáculo
que fizesse arrefecer a sua sanha. As curvas eram feitas praticamente em duas
rodas. Pessoas jogadas pra lá e pra cá feito sardinhas em lata, gritaram
revoltadas. Não adiantou nada. O segurador de volante e sofredor de alopecia,
de olhos esbugalhados, nem mais ouvia a campainha solicitando parada. Ele só
tinha o intuito insano de me derrubar e machucar. Só que eu não entro em duelo
despreparado. Já havia afivelado meu cinto de segurança, daqueles usados para
lavar janelas em prédios de cinqüenta andares, no cano do carro e me mantinha ali
firme e pregado como macaquinho nas costas da macaca-mãe. Objetos, velhinhos e
crianças voavam no interior do bólido a exemplo do que acontece num avião despressurizado.
Buzinas ensandecidas eram acionadas pelos automóveis nas ruas. Acenos de
marronzinhos, apitos, viaturas do CET, ambulâncias, bombeiros e helicópteros
dos programas sensacionalistas de TV perseguiram o 4727-10 desvairado pelo
bairro do Jabaquara, até que as sirenes e barreiras da polícia fizeram o
aparvalhado timoneiro de testa alongada frear o desgastado coletivo.
Soltei o cinto de segurança, fui
para a porta de saída do carro ao lado do navegador desprovido de proteção
capilar na moleira, agora com um sarcástico e incontrolável gargalhar de
vitória. Parei no pé da escada. Dei um “duplo twist carpado com pirueta”, digno
de olimpíada e cheguei ao solo sem movimentar o corpo um milímetro. De braços
abertos recebi os aplausos de todos os passageiros, policiais, marronzinhos,
bombeiros, paramédicos e curiosos.
Dotado de crânio vazio por dentro
e por fora, aquele escalpelado psicopata Jóquei de Busão não imaginava quem tinha
provocado.
Faroberto