E depois da vigésima tentativa agarrei-a com as duas mãos e afundei-lhe a caneta bem no lado esquerdo! Ainda assim não esboçou reação. O líquido escuro que jorrava era da tinta.
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Passaram-se duas horas e ainda está ali, pálida, inalterável, amarrada à superfície da mesa. Deve estar respirando, mas não manifestou a mínima expressão, nem de dor. Dou voltas em torno.
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Uma hora depois busco novos métodos de tortura. Preciso arrancar-lhe, é minha função. Juro, já a dobrei toda, deve ser contorcionista. Arranquei-lhe dois dedos de prosa, recitando 'bem-me-quer-mal-me-quer'. Nada.
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Apelei para um disfarce... Retorno à sala, agora vestido de batina. Quinze minutos. Acho que ela não é católica, nunca há de confessar.
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O torturador se nutre e se fortalece ao ver impressa a dor na face do torturado. Assim, sabe que está avançando, sabe que toda panela-de-pressão tem seu limite, todo leite tem seu estado de fervura que é quando se derrama sujando todo o fogão, mas, diante de um adversário com tal controle, tal frieza, até o especialista mais calejado esmorece, é ele quem perde as estribeiras. Pois bem, me desesperei, me pus de joelhos, às lágrimas, implorando por uma palavra, uma palavrinha qualquer, nem que fosse um bom dia, boa tarde, um grunhido, qualquer coisa. Zero.
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De repente, passados desespero e raiva, tomou conta de mim uma ternura, um amor delicado, uma afeição materna por ela. Comecei a fazer-lhe cócegas, carinhos, beijei-lhe respeitosamente toda a superfície da pele machucada, e ela súbito reagiu com amorosa violência. De olhos fechados, pude perceber as palavras se atirando em mim como uma rajada de pétalas.
A crônica estava feita. E a folha de papel, cuja absurda resistência me cansara, estava agora em paz.
Lê
(pós-título: 'Do exaustivo exercício da crônica'. Para André Aguirra)