quarta-feira, 13 de abril de 2016

BEIJO DA MADRUGADA

Por que tu me beijaste eu não sei.
Será por que tu me notaste triste?
Será por que o meu coração ouviste
descompassado, amargo, fora da lei?

Não sustentei olhar teus olhos refulgentes,
sorrindo pro meu rosto de indigente.
Só admirei os teus bailados deslumbrantes,
a desfilar-me paixão louca e vibrante.

Por que tu me beijaste, madrugada,
se cedo tu fugias pro teu dono
e o dia preparava outra cilada?

Restou-me a luz pungente do abandono,
minha poesia estéril ou calada,
se a lua adormeceu eterno sono.
 
Fábio Roberto
2008



sábado, 9 de abril de 2016

poema de 6 anos

o primeiro nos chegou já do nada
nada trouxe ou perguntou já de prima.
só depois vindo do bar deu em cima,
do florista trazendo a flor roubada.

o segundo mal chegou foi embora,
como tudo que é melhor passou logo.
o segundo - nem minuto, nem hora -
escapou como um silêncio no fogo.

o terceiro foi azul como um sábado.
como o primeiro, intenso, primavera.
qual o segundo, inebriado, bêbado,
e como o quarto, ver-se-á, quimera.

o quarto foi assim: bom como um quarto,
onde existirmos — noite em plenilúnio.
e como o quinto então seria, farto,
como um segredo dentro de um murmúrio.

e o quinto, claro, toda quintessência
de ímpetos, quíntuplos, de amor sublime,
inabalável, toda a exuberância
da delicada flor em terra firme.

o sexto, ah, o sexto é como uma sexta,
é bom: como o aconchego de uma cama.
como a doce alegria de uma festa
que dura bem mais que um fim de semana.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Nordeste

Nordeste, nos deste muito
mais que as belezas apenas
de sua terra. Centenas,
milhares de razões junto
neste poema fortuito.

De artistas quantos caetanos
wagners, caymmis e lázaros;
das aves, que tantos pássaros,
de carcarás a tucanos, *
neste poema os louvamos.

Imaterial seu tesouro,
frevo, baião, samba, jongo,
o repertório é bem longo.
Capoeira de Besouro
neste poema faz coro.

De culinária, Nordeste,
quantos temperos na feira!
Quanto nome à macaxeira!
pimenta cabra-da-peste,
em que poema arde?! neste!

Se humilde é a roupa que veste,
tua cultura é mais rica,
quanto mais tiram mais fica
neste meu poema agreste:
nos deste muito, Nordeste!



*!

terça-feira, 5 de abril de 2016

A metáfora contra a realidade

A medieval mídia acende as tochas junto ao leiloado legislativo, cujos gritos fossilizados, saídos de suas cavernosas bocas, fundem-se ao inflamado coro de apoio ao judô judiciário. Uns poucos monopolizam a improvisada arquibancada.
Imobilizado, o executivo, de terno e gravata em vez de quimono, não pede água, pede whisky. O oponente se enfurece da ousadia e aplica um desastrado wazari, derrubando os sigilos. A chusma entusiasmada ordena ao heroico judoca o ippon, alguns pedem que o executivo se deixe cair por si mesmo. 
A midieval e os leiloados querem ver sangue, mas não podem ver sangue porque sangue é vermelho e vermelho é estritamente proibido nesse azulado tatame. 
Os apostadores com suas notas descabeladas nas mãos, os patrocinadores com suas notas bem penteadas no bolso, fazem pressão pelo resultado. Os primeiros salivam ameaças. Os outros dão diagnósticos terríveis, a depender do resultado. Os organizadores do evento se entreolham e se comunicam com certa cumplicidade submissa.
A faixa preta, que devia estar na altura dos olhos, circunda a cintura do judoca, qual bambolê de algum Saturno imaginável. Ele tenta derrubar o adversário puxando pela gravata, os juízes discutem se isso é ou não um golpe válido. Outros, se é de fato um golpe. Outros ainda, se o uso da gravata é permitido. Um cogita se o engravatado em si é um competidor legítimo, questiona a autenticidade de sua classificação. Alguém propõe um exame de doping surpresa  ali mesmo durante a luta, qualquer coisa que afete o resultado da disputa. Discutem tanto que a bancada quase sai na pancada.
Todos se engalfinham, se atracam. A área de combate se alastra para o ginásio todo.
De repente é várzea, se já não era.
Enfim, diante desse cenário cruamente realístico toda matéria onírica antes plástica e espontaneamente abstrata se reduz a tédio observável, petrificado. Toda metáfora se empalidece e desbota inutilizável. Toda hipérbole se esvazia e murcha comedida. Toda ficção, a mais absurda, se espanta e se queda boquiaberta. Toda substância química alucinógena desperta num colchão de sobriedade jamais experimentado. Garanto, nada, nada é mais exagerado, imprevisível e inacreditável do que a própria realidade.